Deus
tem nome?
Mark Sameth, formado pelo Hebrew Union College-Jewish
Institute of Religion, rabino da Sinagoga Comunitária de Pleasantville, em Nova
Iorque, publicou um polêmico artigo na revista Reform Judaism, em sua edição do
primeiro quadrimestre de 2009. No texto, Sameth defende que o verdadeiro nome
de Deus, tão buscado por gerações e gerações de judeus, é, na verdade, um nome
andrógino, que mescla em equidade "todas as energias masculinas e
femininas".
Eis
o texto
Quando Deus começa a criar o primeiro ser humano – Adão –
ele diz: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança". O texto
continua: "Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus,
criou o homem e a mulher" (Gênesis 1, 26-27).
O texto parece estar dizendo (e os rabinos do Talmud e do
Midrash entendem dessa forma) que Adão foi criado por Deus como homem e mulher.
Os rabinos falam abertamente disso, e até compuseram com esmero relatos
especulativos sobre a separação dessa criatura hermafrodita em personagens
homem e mulher que conhecemos como Adão e Eva. O que os rabinos não estavam
dispostos a discutir abertamente era até onde essa criatura terrena foi criada
"b’tzelem Elohim", na imagem de gênero duplo de Deus. Mas se lermos o
texto como um místico o leria, prestando uma atenção extremamente grande e
assumindo que o texto bíblico mais esconde do que revela, podemos encontrar
pistas que se referem à natureza andrógina de Deus. Consideremos, por exemplo,
que a Torá: identifica Moisés como um pai que amamenta (Números 11, 12) [1] nos
diz que Adão deu o nome de Eva a sua esposa "ki hu hay’tah eim",
"porque ele era a mãe de todos os seres vivos" (Gênesis 3, 20) [2] narra
que Abraão instruiu o seu servo para estar atento a uma mulher que irá dar água
aos camelos porque "hu ha’ishah", "ele será a mulher" para
o meu filho (Gênesis 24, 44) [3] e a lista continua.
Por que a Torá repetidamente confunde os gêneros de seus
personagens principais? A que a Torá está aludindo? Eu acredito que esses não
são erros/enganos de escrita, mas a verdadeira chave para abrir um dos
mistérios mais permanentes da Torá.
Mas antes uma nota sobre as muitas ocorrências estranhas
na Torá sobre os nomes. O nome do nosso patriarca Jacó é duas vezes modificado
para Israel. Faraó não é um nome. E Moisés não é um nome. Moisés, em egípcio,
significa "nascido de" – assim como no nome Tutmosis (nascido de
Tut). Consideremos: se o nome do nosso grande líder Moisés não é realmente um
nome, ele significa alguma outra coisa? De um modo interessante, se soletrarmos
o nome Moisés em hebraico de trás para frente, Moshe se torna HaShem, que
literalmente significa "O Nome", uma das formas dos judeus se
referirem a Deus.
Então, consideremos: se o nome de Moisés soletrado de
trás para frente se torna HaShem, refletindo a natureza divina do ser humano, o
nome de Deus, soletrado de trás para frente, não deveria refletir, da mesma
forma, algo essencial sobre o gênero humano? De fato, sim. Observem o
Yod-He-Vau-He [YHWH], o inefável nome de Deus. Conhecido como o Tetragrammaton,
permitiu-se que o Nome fosse usado nas saudações diárias pelo menos até o ano
586 a.C., quando o Primeiro Templo foi destruído (Mishnah Berakhot 9, 5). Nesse
tempo, sua pronúncia era permitida apenas aos sacerdotes (Mishnah Sotah 7, 6),
que o pronunciavam em sua benção pública ao povo. Depois da morte do Sumo
Sacerdote Shimon HaTzaddik, por volta do ano 300 a.C., (Talmud Babilônico,
Tractate Yoma 39b), o nome foi pronunciado apenas pelo Sumo Sacerdote no Santo
dos Santos no Yom Kippur (Mishnah Sotah 7:6; Mishnah Tamid 7, 2). Os sábios
passavam a pronúncia do Nome aos seus discípulos apenas uma vez (alguns dizem
duas vezes) a cada sete anos (Talmud Babilônico, Tractate Kiddushin 71a).
Finalmente, com a destruição do Segundo Templo em 70 a.C., o Nome nunca mais foi
pronunciado.
Mais tarde, alguns especularam que o Nome era pronunciado
como "Jeová" ou possivelmente "Yahweh", mas os estudiosos
não concordaram. Ninguém sabia com certeza como se pronunciava o inefável Nome
de Deus.
Mas e se o Yod-He-Vau-He foi por muito tempo
impronunciável pela simples razão de que está escrito ao contrário? De trás
para frente, o Nome de Deus se torna He-Vau-He-Yod. E essas duas sílabas,
He-Vau e He-Yod, podem ser vocalizadas como os sons equivalentes dos pronomes
hebraicos "hu" e "hi", que são traduzidos como
"ele" e "ela" respectivamente. Combinando-os, He-Vau e
He-Yod se torna "Ele-Ela".
Ele-Ela, eu acredito, é o impronunciável Nome de Deus!
Esse segredo esteve escondido a olhos vistos durante todos esses anos, porque
se afirma explicitamente na Torá: Deus criou a terra e as criaturas à própria
imagem de Deus, masculino e feminino.
É desnecessário dizer que a noção de um Deus andrógino
que cria essencialmente seres humanos andróginos tem profundas implicações. Há
muito tempo, o Zohar, o livro de misticismo judeu por excelência, declarou:
"É de incumbência de um homem ser sempre masculino e feminino" – uma
afirmação estranha, especialmente no século XIII. Mas a nossa sociedade
recentemente começou a mostrar sinais de ser capaz de entender e de querer
aceitar essa mensagem. O Dr. James Garbarino, um dos especialistas mais
influentes da nossa geração em desenvolvimento de crianças, observa que as
chamadas "meninas tradicionais que tem apenas características 'femininas'
estão em desvantagem no que se refere ao coping [4]" e os chamados meninos
tradicionais também estão em desvantagem. "Combinar os traços
tradicionalmente femininos com os traços masculinos", escreveu Garbarino
em "See Jane Hit", "contribui para uma maior resiliência".
O rabino Jeffrey Salkin, autor de "Searching for My
Brothers", indica que as culturas judaicas e ocidentais mantiveram por
muito tempo perspectivas diferentes sobre a questão da androginia. Enquanto a
cultura ocidental diz "seja um homem", ele explica, a mensagem da
cultura judaica sempre foi "seja um homem bom". Ser um homem bom – o
que ele define como "masculinidade madura" – é "uma combinação
tanto de traços masculinos quanto de femininos". Em seu famoso livro
"Deborah, Golda, and Me", a feminista judaica Letty Cottin Pogrebin
desafia os judeus a "ampliar a capacidade do homem para as expressões
emocionais e para o cuidado com a família, e a expandir as opções das crianças
independentemente de seu gênero. É possível", ela pergunta retoricamente, "que
maiores oportunidades para as crianças, homens mais amorosos e mulheres mais
competentes e confiantes não sejam bons para os judeus?".
Ao discutir o patriarcado em "The Torah: A Women’s
Commentary", Rachel Adler comenta que o mundo "implora por
reparos" – não apenas por causa das mulheres, mas por causa dos homens
também. O trabalho do judaísmo reformado – de fato, o trabalho de todas as
comunidades religiosas progressistas e igualitárias do mundo – requer um
compromisso sempre mais profundo com esse reparo. Isso significa esforçar-se
pela integridade em nós mesmos; com os nossos familiares; na relação entre si
mesmo e a comunidade; e na relação entre as comunidades individuais e o mundo
como um todo. Significa fazer tudo o que fizermos, nas palavras dos nossos místicos
antigos, "l’shem yichud", basicamente pela causa da unificação de
Deus.
Agora, baseados nessa nova compreensão de Deus como
Ele-Ela, é o momento de livrar-nos da concepção estereotipada de Deus como um
velho homem com uma longa barba branca nas nuvens. Pensar em Deus como Ele-Ela
nos concede a liberdade de ver a Divindade como a totalidade de toda a energia
masculina e feminina.
É o momento de considerarmos a mudança de nossas orações
mais sagradas, particularmente aquelas que se referem a Deus como Senhor. Os
antigos rabinos empregaram a palavra "Senhor" (Adonai, em hebraico)
como um substituto respeitável para o impronunciável Tetragrammaton e
recentemente alguns judeus reformistas – incluindo os editores de "The
Torah: A Women’s Commentary" – preferiram não usá-lo. Com essa nova
cognição do Tetragrammaton, podemos revisitar confiantemente nossa declaração
de fé: "Shema Yisrael, Adonai Elohenu, Adonai Echad – Escuta, Israel, o
Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um" (Deuteronômio 6, 4) e afirmar, pelo
contrário: "Shema Yisrael, Adonai Elohenu, Adonai Echad – Escuta, Israel,
Ele-Ela é nosso Deus, Ele-Ela é Um". É o momento de afirmarmos que a
tradição de igualdade de gênero da reforma do judaísmo – que deu poder às
mulheres para se tornarem rabinas, cantoras e líderes leigas da congregação –
não é uma invenção moderna e, de certa forma, menos autêntica, mas sim
emblemática da mais antiga concepção de Deus do judaísmo.
E é o momento de repensarmos como escolhemos passar
adiante a nossa herança às próximas gerações. Se você já tentou ensinar Deus a
uma classe de estudantes judeus precoces, você provavelmente já ouviu aquele
sussurro do fundo da sala: "Sim, claro". Bem, recentemente eu
aproveitei a oportunidade e ensinei a minha turma pós-bar/bat mitzvah a minha
idéia do nome secreto de Deus e seu significado. Então, discutimos sobre o que
isso implicaria em nossas relações entre nós mesmos e com Deus. Quando
terminamos, uma das jovens voltou-se para os outros que estavam sentados ao
redor da mesa e disse as palavras pelas quais os rabinos dão sua vida: "O
judaísmo", ela exclamou, "é tão legal".
Notas:
1. O versículo, na
edição Ave Maria, diz: "Porventura fui eu que concebi esse povo? Ou acaso
fui eu que o dei à luz, para me dizerdes: leva-o em teu seio como a ama costuma
levar o bebê, para a terra que, com juramento, prometi aos seus pais?".
2. "Adão pôs à sua
mulher o nome de Eva, porque ela era a mãe de todos os viventes", na
edição Ave Maria. Ou "O homem chamou sua mulher Eva, por ser a mãe de
todos os viventes", na Bíblia de Jerusalém.
3. "A jovem que
vier buscar água e a quem eu disser: Dá-me de beber, por favor, um pouco de
água de teu cântaro, e que responder Bebe, não somente tu, mas tirarei água
também para os camelos, essa deverá ser a mulher que o Senhor destinou para o
filho do meu senhor’."
4. Coping é o termo da
psicologia utilizado para designar o conjunto de estratégias cognitivas e
comportamentais desenvolvidas pelo sujeito para lidar com as exigências
internas e externas que são avaliadas como excessivas (circunstâncias adversas
ou estressantes), ou as reações emocionais dessas exigências.