(Breve comentário sobre Ezequiel)
INTRODUÇÃO
Ezequiel: um
homem, sem dúvida, descontente, de gênio tão variado, tão rico, tão complexo,
que seu livro se nos apresenta denso e difícil de percorrer. Todavia este livro
dá testemunho de um homem que viveu um dos momentos mais dramáticos da história
de Israel e cuja experiência espiritual é uma das mais aptas a esclarecer o
destino do povo de Deus. Não será, então, de particular atualidade?
A personalidade
de Ezequiel reflete uma força mística. A proximidade do seu contato com o
Espírito suas visões e a freqüência com a qual a palavra do Senhor vinha até
ele fornece um paralelo entre os profetas extáticos mais antigos e os profetas
escritores clássico. Suas experiências espirituais também anteciparam a
atividade do Espírito Santo no NT. A ele adequadamente pertence o título de “carismático”.
A mensagem de
Ezequiel foi endereçada ao resto dos pervertidos de Judá e aos exilados na
Babilônia. A responsabilidade moral do indivíduo é um tema de primeira
importância em sua mensagem. A responsabilidade coletiva não mais resguarda o
indivíduo. Cada indivíduo deve aceitar uma responsabilidade pessoal pela
desgraça da nação. Cada indivíduo é responsável pelo seu pecado individual (18-2-).
Foi o peso do pecado acumulado de cada indivíduo que contribuiu para o
rompimento do concerto de Deus com Israel, e cada qual leva uma porção da culpa
pelo julgamento que resultou no exílio para a Babilônia.
O LIVRO DE EZEQUIEL
Sua estrutura se apresenta simples e lógica. Depois do relato da
vocação do profeta (1:1-3:21), vem os oráculos que anunciam o julgamento de
Jerusalém (3:22-24:27) , o castigo das nações (25-32) e a restauração
do povo aniquilado (33-37). O livro se completa nas vastas perspectivas de um
horizonte distante: aos olhos do leitor, desenrola-se inicialmente a decisiva
batalha do povo de Deus diante de terríveis inimigos (38-39); depois se
desenha a silhueta da montanha sobre a qual Ezequiel vislumbra a capital
futurista do povo de Deus renovado (40-48).
Mas, depois de
ultrapassado esse esquema, bastante lógico, o livro espanta por certa liberdade
que aparenta desordem. Assim, no interior do cap. 34, os temas do pastor e do
rebanho se desenvolvem em sentidos diversos (inspirados, é verdade em
Jr-23;1-6), e o cap. 1 contem um acúmulo de detalhes estranhos,
aparentemente supérfluos – as rodas, por exemplo – ou então acrescentados em
detrimentos de coerência gramatical. Os discípulos de Ezequiel têm grande responsabilidade
nessa desordem. Aparentemente indiferentes a toda lógica, fragmentaram seus
oráculos: (3:22-27) (4:4-8) (24:15-27) e (33:21-22) poderiam ser os
membros dissociados de um relato contínuo; ou então aproximaram indevidamente
oráculos independentes, unindo-os por um vínculo fictício: assim é que o termo
de encadeamento “espada” (cap. 21) serve de elo entre os
parágrafos alheios uns aos outros: a espada do Senhor (21:6-12), espada bem
afiada (21:13-22), do rei da Babilônia (21:23-32), erguida contra
os amonitas (21:33-37); esses discípulos chegaram a repetir várias vezes os
mesmos oráculos: “os justos caminhos do
Senhor” encontram-se – idênticos, ou quase – em (18;1-32) e (33:10-20).
O próprio
Ezequiel não é totalmente estranho à atual fisionomia de seu livro; foi ele o
primeiro a sobrecarregar as frases com detalhes, os capítulos com parágrafos,
todos portadores de uma doutrina capital, mas sem compromisso com a harmonia
primitiva: assim aconteceu-lhe completar os relatos das visões (1-3;
8-11) ou de certo gesto profético (4:4-17) etc. Aliás, era o que
desejava seu gênio variado, instável, quase doentio, por assim dizer. Não o
vemos prostrado (3:15), mudo (3:26), talvez paralisado (4:4-8)?
Esse gênio não consegue defender-se da atração dos extremos: é fulgurante e
meticuloso, pronto para o sublime e para o trivial; deixa-se seduzir pelo peso
do barroco, deixa-se levar pela embriaguez do surrealismo (ver os poemas da águia: 17:1-10; do dragão: 32:1-8), e em seguida encerra sua imaginação impetuosa e sua frase
redundante nas frias distinções de um casuísta (caps. 18 e 33), na
monótona descrição de uma geografia de computador (caps. 47 e 48), na seca
enumeração de dados arquitetônicos (caps. 40 e 42) ou nos parágrafos
cansativos de rubricas minuciosas (44:46). È ainda ele que se deixa
guiar pelos marcos preciso da história – as alusões históricas são numerosas no
plano de fundo dos capítulos 16 e 19, ou nos diversos oráculos contra as nações
– e que mostra familiaridade com riquezas inesgotáveis, perspectivas fugidias e
indefinidas da evocação mística: o homem primordial e o jardim do Éden (cap.28),
a árvore cósmica (cap. 31), as regiões infernais (cap. 32).
O livro de
Ezequiel faz parte da subdivisão chamada Profetas maiores do cânon hebraico e
encontra-se logo após Isaías e Jeremias. A Bíblia em português adota a ordem da Septuaginta e coloca Ezequiel após
Lamentações. Apesar do livro sempre ter feito parte do cânon hebraico,
estudiosos judeus posteriores questionam seu valor pelas aparentes discrepâncias
entre sua interpretação do ritual do templo e as prescrições da lei mosaica
(Divergência no número e nos tipos de animais sacrificados na Festa da Lua Nova
(Nm 28.11 e Ez 46.6). Os rabinos finalmente restringiram o uso público e
particular de Ezequiel.
O PROFETA EZEQUIEL
Ao longo deste livro, cuja estrutura e estilo já esboçam a
silhueta de alguém, finalmente aparece um personagem, Ezequiel, o profeta.
Ezequiel, cujo nome significa “Deus
fortalece” é identificado como o filho de Buzi, o sacerdote (1:3).
Embora essa identificação tenha sido questionada, parece não haver uma razão
válida para se duvidar disso. Ele era, provavelmente, um membro da família
sacerdotal dos Zadoqueus, que se tornaram importantes durante as reformas de
Josias 621 a.C. Ezequiel passou seus vinte e cinco primeiros anos da sua vida
em Jerusalém. Estava se preparando para o serviço sacerdotal do templo quando
foi levado prisioneiro à Babilônia em 597 a.C. Ezequiel desenvolveu a sua
atividade profética na Babilônia entre os anos 593 e 571 a.C. representando a
passagem da profecia pré-exílica para o período pós-exílio. De fato, a sua
atividade desenvolveu-se em plena fase que antecedeu a destruição de Jerusalém (em
Janeiro de 587 a.C.) e
durante o período de cativeiro na Babilônia.
Contemporâneo da
queda de Jerusalém (587 a.C), às vezes da à impressão de ter começado sua pregação
na capital palestina, antes de continuá-la e de levá-la a termo entre os
deportados, às margens do rio kebar.
Assim se explicaria melhor, entre outras coisas, a minuciosa descrição
de todos os gestos idolátricos realizados no Templo (cap.8). Mas o argumento
parece pouco convincente, a maioria dos comentadores julga que toda a atividade
profética de Ezequiel se desenrola em terra babilônica, junto a uma cidade:
Tel-Abib; o profeta fora levado pra lá antes da destruição de Jerusalém, por
ocasião das primeiras gazuas palestinas de Nabucodonosor (598 a.C). São
registradas as datas de certos oráculos. A visão celestial do capítulo 1 não é
confiável (tratarei deste assunto ao analisar alguns textos), mas
as outras são dignas de atenção. A visão dos pecados de Jerusalém (8:1)
é situada no sexto ano (do exílio do rei
Joaquim, que é também o de Ezequiel), ou seja, exatamente 17 de Setembro (mês de elul no calendário judaico) de
592 a.C. o oráculo da panela (24:1) é datado do nono ano, ou
seja, 15 de dezembro (mês de tevet no
calendário judaico) de 589 a.C. dia em que Nabucodonosor começou o cerco de
Jerusalém; outros são datados no décimo ano 588, no tempo em que o faraó do
Egito se encontra em má situação (29:1); no décimo primeiro, em 587 (26:1),
no décimo segundo, ou seja, no início de 585 (33:21), no vigésimo
quinto, em 573 (40:1), e por fim no vigésimo sétimo em 571 (29:17).
A MENSAGEM DE EZEQUIEL
É, pois, na Babilônia que se desenvolveu a atividade daquele que
era até então um sacerdote e que conservou, até o fim da vida, sua mentalidade
de sacerdote perito em culto, liturgia, rubricas e sacristias (caps.
40-48); é lá ainda que, de repente, ele se transtorna. Produzem-se dois
acontecimentos: a irrupção da glória de Deus fez desse sacerdote um profeta, e
a queda de Jerusalém transformam o pregador de condenação em pregador de
salvação. Vamos analisar estes dois fatos:
A irrupção
da Glória: Eis, pois, que a partir de certo dia, a vida de Ezequiel é
como que invadida pela glória do Senhor. Ela se mostra em várias ocasiões (1:28;
3:23; 8:4; 10:1; 43:2), deixando-o todas as vezes atônico, extasiado (3:15).
Que vê ele? No
meio de uma grande nuvem, precedido pelo sopro da tempestade, um fogo em forma
de redemoinho; e depois, seres vivos. São quatro; eles voam, sustentam um
firmamento sobre o qual aparece um trono. Acima, há como o aspecto de homem,
com uma claridade ao redor dele... É o aspecto da glória do Senhor (1:4-28).
No fundo, o
profeta está em vias de reviver, mas com gênio diferente e noutro contexto, a
visão de seu grande predecessor, Isaías. Ele acaba de receber a revelação
esmagadora da transcendência do Senhor, da Glória daquele que é o rei de toda a
terra (Is-6:3). Este último ponto está ausente da descrição inicial
de Ezequiel, mas o profeta sugere sua verdade acrescentando traços secundários,
com o risco de obscurecer sua intuição primordial. Assim se explica a longa
descrição desses animais fantásticos, tomados do bestiário mítico dos
babilônios, que o profeta se compraz em ver a serviço do Senhor; ou ainda a
presença, totalmente supérflua, de rodas alucinantes que mostram ao seu modo
que a Glória é onipotente em todos os lugares.
Esmagado por essa
revelação, Ezequiel percebe violentamente sua pequenez; em face da Glória ele
não passa de um ínfimo e derrisório filho de homem, hesitante atônito (1:28;
2:2; 3:14-17; 22:24); sobre ele a mão do Senhor (1:3; 3:22; 33:22; 37:1; 40:1)
caiu (8:1)
pesadamente (3:14); sobre ele também, o Espírito do Senhor vem
(2:2; 3:24), (11:5), para arrebatá-lo (3:12.14;
8:3; 11:1.24; 43:5).
Mas o profeta
percebe a Glória que sai do templo e se afasta de Jerusalém (11:22.23). O Senhor
deixa Sião! Por quê? Como?
Ezequiel descobre
no pecado de Israel o motivo de tão dramática separação; o pecado de Israel é o
mau endêmico do qual ele procura entrever a gravidade, a extensão, a
profundidade. O pecado é o ato de violência, o crime em que o sangue é
derramado (7:23; 9:9; 16:36; 18;10 etc.), que, pelo menos uma vez põe em
pé de igualdade com a idolatria (36:18). Pois o pecado capital é
para ele, a idolatria (14:1-8), que ele vê praticada sobre
toda a colina, sob as árvores (6:3.6.13; 16:16; 20:28.29) e até no
templo de Jerusalém (cap. 8). Encontra seus sinais na entrada do pórtico interior (vv.
3-6), no adro (vv.7-13), no santuário de Senhor (vv.
14.15) entre o vestíbulo e o altar (v. 16). O pecado de Israel é também
a imoralidade cotidiana; Ezequiel a descreve inspirando-se nos formulários de
confissão dos pecados, em uso nos santuários (18:5-9; 22:3-12.23-30)
Ezequiel diz e
repete que esse pecado é um horror, uma abominação (5:9-11; 6:9; 16:22-52);
é um gesto de infidelidade, um adultério, um ato de prostituição. O profeta
desenvolva este tema na alegoria da menina encontrada, adotada e depois
desposada, que finalmente se transforma em “prostitua
despótica” (16:30); ele o retoma
depois na história das duas irmãs, Oholá (Samaria)
e Oholibá (Jerusalém), esposa infiéis
que se entregaram a uma insolente prostituição (Cap. 23)
O profeta
finalmente chega a descobrir a raiz da impudica infidelidade, à qual Jerusalém
se abandona no orgulho. O pecado dos pagãos de Sodoma (16:49-50), do rei de
Tiro (28:2.5.17),
do Egito (30:6.18) e de seus faraós (32:12; 35:13) é também o pecado de
Israel (7:20.24; 33:28), esposa envaidecida com sua beleza (16:15.56);
é também o pecado do príncipe (21:30-31).
Porventura,
Jerusalém não tem uma origem pagã, ela que descende de pai emorita e de mãe
hitita? (16:3.45) Sua corrupção, que se manifesta ao longo de toda a
sua história (cap.20), é congênita (cap.16), e a permanência prolongada
de Israel-Jacó no Egito – onde Deus com a mão erguida, jurou, e disse: Eu sou o
Senhor vosso Deus (20:5) – devia ter as mais funestas conseqüências: ele daria a
Israel essa paixão pelos ídolos à qual
depois ninguém saberia renunciar (Cap. 20).
É em meio a esse
povo que Ezequiel é estabelecido profeta, com a missão de proclamar a palavra
de Deus. Ainda que esta palavra penetre nele como um alimento e o encha de
doçura (3:2.3), o filho de Buzi deve esperar encontrar em seu caminho
sofrimentos e espinhos toda vez que ele clamar: Assim fala o Senhor Deus (3:11);
mas não deve desistir, pois o essencial é, no fim das contas, que os deportados,
por mais rebeldes que sejam, saibam que há um profeta no meio deles (2:5).
Ezequiel será uma
“sentinela a serviço de Israel”.
Deverá dizer ao perverso: “vais morrer”,
a fim de que o mal abandone a sua má conduta e viva; deverá admoestar o justo
para que não peque, a fim de permanecer em vida (3:16-21); pois, ao
contrário do adágio que se costuma repetir em Israel, ele afirma: Quem pecar,
esse morrerá; o filho não arcará com a iniqüidade do pai, nem o pai com a
iniqüidade do filho (18:4-20).
Todavia, se
Ezequiel deixar de admoestar o malvado, terá de prestar contas do sangue do mau
que houver perecido por falta de admoestação oportuna (3:18). Esta hipótese não
é gratuita: nessa época, não faltavam pretensos profetas, que seguiam sua
própria inspiração sem jamais ter tido visão. São semelhantes a pedreiros que
se contentam com rebocar um muro rachado, com risco de deixar ruir todo o
conjunto. Tais são os profetas que publicam uma mensagem de paz sem se
preocupar em curar o pecado (Cap. 13).
A
queda de Jerusalém: O pecado não pode deixar de conduzir o povo a um
julgamento inelutável; o profeta vê sua realização bem próxima e se obstina a
anunciá-lo incansavelmente, por palavras (Caps. 7:9-11) e atos (Caps.
4-5). Até aquela triste manhã, em que alguém se apresenta para lhe
declarar a desgraça que aconteceu: Jerusalém foi tomada, destruída, incendiada;
os sobreviventes partem para o exílio.
Foi este o
segundo acontecimento capital na vida de Ezequiel. Instigado a não deixar
transparecer seu pesar (24:15-27), deve ter sentido uma dor
pelo menos igual à de seus companheiros de deportação. Com efeito, o sofrimento
e o desespero deles foram tais que chegaram a dizer: estão sobre nós as nossas
revoltas e os nossos pecados, e apodrecemos por causa deles! Como poderemos
viver? (33:10) ou ainda: os nossos ossos estão ressequidos, pereceu a
nossa esperança, estamos esfacelados (37:11).
Então Ezequiel
reagiu; pôs-se a anunciar o castigo para as nações cujos sarcasmos
intensificaram a dor dos vencidos. Israel não será o único a sofrer o
julgamento. Sem dúvida, o profeta outrora entreviu que povos de fala
impenetrável e de língua enrolada (3:6) o teriam escutado melhor do
que a casa de Israel; contudo, esses povos agora são convocados ao tribunal de
Deus
(Caps. 25-32). O Egito é o principal acusado (Caps. 29-32), ele que
provocou a traição de Sedacias (17:15), infiel às suas alianças (17:19).
Tiro deve comparecer por ter tido intenções injuriosas contra Jerusalém,
oprimida pelos exércitos inimigos (26:2), e também depois os países
vizinhos da Palestina: Amon, Moab, Edom e os filisteus, todos culpáveis de
comportamento odioso com relação ao povo aniquilado (Cap. 25).
Mas eis que o
profeta, arauto trágico, reduzido até aqui ao anúncio de uma desgraça
inelutável, transforma-se em pregador de salvação. Já os seus oráculos
anteriores não haviam excluído todo motivo de conforto. O tema do “resto” aparece em algumas passagens;
sua evocação é rápida, tão rápida, aliás, que se pode ver aí o resultado de
algum acréscimo secundário; assim (Cap. 5:1-2) são explicados nos vv.
12 e 13, ao passo que (Cap. 5:3-4), que, ademais,
comprometem a lógica do cálculo profético, não recebem nenhum comentário.
Contudo, o tema é claramente atestado no (Cap. 9); aí vem à tona a execução
dos habitantes de Jerusalém, precedida por um gesto de seleção que põe à parte
os homens que gemem e se lamentam por causa de todas as abominações que se
cometem em Jerusalém (9:4).
Haverá, portanto
um “resto” (6:8-10; 9:4-8; 11:13; 12:16; 14:22.23), mas tão irrisório, tão
frágil (11:13), reduzido talvez aos cadáveres amontoados em Jerusalém (11:7),
que sua evocação não pode impedir os exilados de perder sua débil esperança.
Então o profeta, sentinela atenta, se posta na brecha. Os mortos viverão,
proclama o profeta; e aí temos o maravilhoso afresco dos ossos ressequidos e
revigorados (37:1-14): por mais diminuído e aniquilado que esteja Israel,
ainda que fosse semelhante a um amontoado de ossos abandonado pela vida, o
Senhor saberá fazê-lo reviver ao sopro impetuoso do seu Espírito.
Um povo que volta
à vida, mas a uma vida totalmente diferente da anterior, tal será o Israel
resgatado do exílio. Porque, diz o Senhor: Eu vos tomarei de entre as nações,
vos reunirei de todas as terras e vos levarei ao vosso solo. Farei sobre vós
uma aspersão de água pura e ficareis puros: Eu vos purificarei de todas as
vossas impurezas e de todos os vossos ídolos. Eu vos darei um coração novo e
porei em vós um espírito novo; tirarei de vosso corpo o coração de pedra e vos
darei um coração de carne. Infundirei em vós o meu Espírito e vos farei
caminhar segundo as minhas leis, guardar e praticar os meus costumes.
Habitareis a terra que dei a vossos pais; sereis para mim um povo, e eu serei
para vós Deus (36:24-28).
Essa vida ideal
se realizará num reino reunificado (37:15-28), onde o povo não será
mais entregue às prevaricações dos chefes indignos (34:1-10); ele será
guiado pelo cajado do Senhor, tornando-se ele mesmo o pastor de seu povo (34:11-16);
quanto ao descendente de Davi, ele será simplesmente um príncipe no meio deles (34:24).
ANÁLISE DE ALGUNS TEXTOS
Capítulo 1: “A visão da Glória”.
A indicação
fornecida pelo v.2, que se refere ao quinto ano do rei Joaquim, torna esse dado
cronológico incompreensível. Muitas soluções foram tentadas, mas nenhuma delas
conseguiu impor-se. O número 30 poderia ser o resultado de alguma corruptela
textual; de todo modo, é provável que a data do acontecimento tenha sido
modificada para que o livro começasse solenemente por esta majestosa visão, que
apresenta uma espécie de síntese
imaginosa do ensinamento de Ezequiel.
Quanto ao local “às margens do rio Kebar” deve-se tratar
do canal lateral ao Eufrates, que vai de Babilônia a Warka.
Nas outras visões
da Glória, é o templo, essa casa terrestre, que serve de quadro para o encontro
do Senhor. Agora é no céu que a visão aparece a Ezequiel, visto que ele se
encontra em terra babilônica. Essas indicações topográficas dão todo o sentido
da mensagem ezequeliana; longe do santuário de Jerusalém, os deportados não
estão a despeito do que se pensa (11:15), longe do Senhor; porque do
alto do seu palácio celeste ele reina sobre toda a terra; portanto, está
próximo de seu povo disperso entre as nações.
Essas visões
divinas já presente em Jeremias, onde é dotada de proporções modestas e sempre
explicada pela palavra (Jr:1:11-15 etc.), a visão adquire
em Ezequiel dimensões grandiosas (Ex: 37:1-14), a ponto de eliminar
progressivamente o comentário oral (47:1-12). Mais vasta, mais
complexa, dando maior espaço às sugestões imprecisas, mas muito mais ricas – da
imaginação e do coração, a visão reflete melhor do que a palavra a sublime
transcendência do mistério que Deus deixa apenas entrever e que permanece
radicalmente inefável.
Esta descrição
dos seres vivos no (v.5) – expressão bíblica para animais – é influenciada pelas
imagens murais, pelos motivos decorativos, pelas esculturas que o profeta pôde
ver, seja na Palestina (como os marfins
representando animais fantásticos, com corpo de leão, cabeça de cordeiro ou de
homem, asas de águia, encontrados na costa mediterrânea), seja, sobretudo
em terra de exílio. A descoberta, na Mesopotâmia, de estátuas de personagens
divinas dotadas de quatro rostos torna menos surpreendente à visão de Ezequiel.
No (v.10),
Ezequiel viu na terra de sua deportação, diante dos templos, estátuas de
animais – leões, touros, garantindo-lhes a guarda e mostrando sua
dignidade. É esse mesmo bestiário
símbolo mítico de todas as forças do universo, que ele se apraz em entrever em
torno do Senhor, proclamando a sua sublime grandeza.
(v.12) Ezequiel diz aqui, como no (v.20),
“o espírito”; em outro lugar (2:2),
ele diz um espírito; não é certo que ele queria sublinhar matizes diferentes
com formulações variadas.
No (v.15)
Ezequiel diz que viu ao lado dos seres vivos uma roda, descrição
semelhante a (10:9-13). Existem nos santuários antigos carroças utilizadas
para diversos fins: transporte das vítimas, lavagem das oferendas, etc. Um
deles, encontrado em Chipre, comporta um chassi, montado sobre quatro rodas, em
superestruturas feitas com um quadro decorado com animais fantásticos. O
estranho carro esboçado por Ezequiel tem analogias com esse objeto.
(v.28) Com seus predecessores,
Ezequiel designa por Glória o Ser Divino enquanto se revela; é a manifestação
do poder, da santidade (cf. 28:22, onde os dois temas são postos em
paralelo) de Deus, perceptíveis através dos sinais: fenômenos cósmicos (tormenta
1:4), desenrolar histórico (28:22), símbolos litúrgicos (8-11;
43; 44). Contudo a representação ezequielana apresenta certas
particularidades: a Glória tornou-se imediatamente visível, pelo menos aos
olhos do profeta, numa explosão de luz; além disso, ela tem uma aparência
bastante semelhante á forma humana; por fim, aparece como realidade autônoma,
quase hipostasiada: sai do templo, se posta acima da colina próxima, retorna ao
santuário. Por outro lado, Ezequiel busca suavizar a novidade e a audácia de
tais expressões por fórmulas de aproximação: “a semelhança de” etc. Mas ele busca aproximar os dados dificilmente
conciliáveis que são: o sentido da transcendência e a afirmação da proximidade
de Deus; a convicção da presença divina no santuário e a certeza de que a
Glória não pode ser atingida pela iminente ruína da Jerusalém infiel.
Capítulo 37: “a
visão das ossadas”.
O capítulo 37 de Ezequiel é introduzido com a afirmação de que "a mão de
Javé pousou sobre mim e o espírito de Javé me levou e me deixou num vale cheio
de ossos".
A fórmula "a mão de Javé pousou sobre mim" aparece sete
vezes em Ezequiel e sempre serve para introduzir um novo oráculo ou novo
capítulo.
Este
texto é um dos mais célebres de Ezequiel, respondendo aos problemas e situação
do povo, num tom de esperança e consolação. É muito rico no que se refere ao
sopro, ao espírito = rûah. É o sopro de vida, o hálito, é ele quem faz viver os
ossos secos. Além disso, a profecia diz que ele "vem dos quatro
ventos", ou seja, o sopro deve vir de toda parte. É o espírito que age no
profeta para inaugurar a ação e a palavra profética, e nos israelitas para
instalá-los em seu país.
Esse vale do v.1
trata-se provavelmente do vale onde o profeta teve uma visão (cf.
3:22).
No v.2 Deus faz o
profeta circular no meio de ossos ressequidos, essas ossadas acumuladas no solo
do vale são um sinal de desgraça particular, porque, no pensamento hebraico,
era preciso ser enterrado com os pais no túmulo da família. (Isaac,
Gn-35:29) (Jacó, Gn50:5) etc.
No v.5 nos
originais estão assim: “Farei vir sobre
vós um sopro para que vivais”. Ou seja, a respiração. Pode-se também
traduzir sopro por espírito; mas aqui, ao contrário de (36:26-27), a visão está mais centrada na idéia da vida que na do
dom do Espírito.
O v.11 nos mostra
os israelitas exilados, abatidos, cuja esperança está morta, estando eles
mesmos de certa forma mortos, Ezequiel anuncia a vida. No próprio seio do
desespero e da morte, o Espírito de Deus, cuja palavra profética vai suscitar a
vida, fará jorrar um reinício cujo anúncio deva devolver a esperança aos
deportados (cf. Is-40:1-2; 54:7; Ez-28:25). Os israelitas andavam dizendo:
'Nossos ossos estão secos e nossa esperança se foi. Para nós tudo acabou'.
“Pois bem, profetize e diga: ‘Vou abrir seus túmulos, tirar vocês de seus
túmulos, povo meu, e vou levá-los para a terra de Israel.”
Os ossos são o povo
de Israel que lamenta: “os nossos ossos
estão secos, a nossa esperança está desfeita, está tudo acabado”.
O futuro para Israel só pode ser entendido pela categoria de vida a partir da
morte. A visão dos ossos ressequidos expressa a promessa incondicional de Deus
para o futuro.
O v.16a
O profeta fala sobre a divisão do reino de Salomão em dois, (cf.
1Rs-12).
No v.16b
José, pai de Efraim (Gn-51:52), representa como seu filho as tribos do reino
separado do norte, ao passo que Judá representa o reino hierosolimitano.
Ezequiel anuncia o fim da separação em dois grupos opostos de tribos (cf.
Is-11:13; Jr-3:18).
Esse relato do
v.23 em antigas versões dizem: “Eu os
livrarei de todas as suas apostasias ou de todas as suas abominações”.
O v.24 nos mostra
um pastor único como em (34:23). Da mesma forma que Israel
tem um só Deus, assim haverá um único pastor (cf. Jr-23:4-5; Jo-10:16),
porque ele se terá tornado um só povo (cf. 1Rs-12:20-33; Ez-37:15-28).
No v.27b
diz: “Eu os estabelecerei”. Está
tradução é incerta. O texto parece mal transmitido. O aramaico diz: “eu os abençoarei”; mas a palavra está
ausente no grago e no siríaco.
Quanto ao
santuário do v.24 Ezequiel pensa no povo do templo (caps. 40-44) que está no
centro do país.
PERSPECTIVAS FINAIS
No fim de sua
carreira profética, Ezequiel se aplica a mostrar o caminho do Israel renovado.
Inicialmente ele vê o povo conseguir, no fim dos anos (38:8), a vitória que o
livra de todos os seus inimigos. O povo os enfrentou num combate colossal,
reencontrando todos os seus adversários de todos os tempos, por trás da face
belicosa de seu campeão, Gog, da terra de Magog, grande príncipe de Méshek e de
Tubal. Ele os enfrenta e a todos destrói; com seus armamentos terrificantes ele
faz um fogo de alegria; abandona inúmeros mortos deles à rapacidade dos abutres
e ao cuidado dos coveiros, por sete meses interminavelmente ocupados em
enterrar os corpos dos vencidos (caps. 38 e 39).
Por fim, Ezequiel
imagina Israel vitorioso já instalado numa palestina também renovada. Vê a
terra matematicamente partilhada em zonas que limitam as fronteiras com
absoluto rigor (cap. 47:48); ele a vê banhada com a água maravilhosa, que
jorra do templo (Cap. 47). Será o lugar privilegiado onde, conforme todas as
suas regras (Caps. 40 e 46) se desenvolverão os cultos que celebram a
Glória do Senhor que voltou ao santuário (43:1-12). Pois, de agora em diante,
o templo será o centro da vida do povo, o coração de um mistério que o profeta
faz entrever em uma só expressão: “O Senhor está aí” (48:35).